Estas questões remetem diretamente a outra, que é a definição de        uma Base Nacional Curricular Comum a todas as redes de ensino do        país, a chamada BNCC. A disputa em torno do que cada segmento ou        movimento social acredita que os brasileiros devam aprender        desemboca diretamente neste documento que está em vias de ser        aprovado pelo Conselho Nacional de Educação.
        
        Breve histórico
        
        Retomando para quem não é da área: a lei máxima da educação        brasileira, a LDB, promulgada em 1996, previu em seu artigo 26,        que seria construída uma base nacional comum abrangendo o estudo        da língua portuguesa, da matemática, o conhecimento do mundo        físico e natural e da realidade social e política.
        
        A mesma lei prevê, em seu artigo 23, que as escolas poderão se        organizar em "séries anuais, períodos semestrais, ciclos,        alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados,        com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por        forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo        de aprendizagem assim o recomendar". Ou seja, a LDB abriu o        caminho para que, finalmente, pudéssemos superar o ensino        fragmentado das disciplinas e das séries, já comprovadamente        ineficiente e cada vez menos adequado aos desafios do século XXI.
        
        A partir de 1998, foram formulados os Parâmetros Curriculares        Nacionais (PCN), com orientações para as escolas trabalharem por        ciclos e competências, mas sem caráter obrigatório. Com a mudança        de governo, os PCN foram deixados de lado, sob argumentos de que        haviam sido feitos sem a participação da sociedade, eram muito        extensos e pouco compreensíveis. Nos mesmos anos, foram        universalizadas as provas de português e matemática nas redes        públicas, além do Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM). Na        prática, estas provas passaram a pautar os currículos das escolas.
        
        Os problemas com a BNCC são diversos. O primeiro, e mais        fundamental, é uma evidente contraposição entre tudo o que é        afirmado na Introdução e o que vem depois
        Na falta da base nacional, diversos grupos de pressão conseguiram        alterar a LDB para incluir nela conteúdos obrigatórios que retomam        o velho formato disciplinar: arte, educação física, língua        inglesa, filmes nacionais, direitos humanos, história e cultura        afro-brasileira e indígena e ensino religioso. Se é certo que os        conteúdos assinalados revelam as lutas sociais de um país        extremamente desigual, injusto e discriminatório, também é verdade        que reforçam uma visão conteudista e fragmentária da educação.
        
        Em 2013, o MEC lançou as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN),        que fortalecem o espírito inovador da LDB, afirmando que currículo        é um conjunto de valores e práticas, não uma lista de conteúdos, e        que a fragmentação do conhecimento deve ser superada por        abordagens interdisciplinares e transversais. Para facilitar,        integrou as componentes curriculares (as disciplinas) em áreas do        conhecimento: linguagens, ciências da natureza, ciências humanas        ensino religioso e matemática (esta última não integrada às demais        por razões inexplicadas).
        
        Em 2014, o Plano Nacional de Educação, que é lei, previu a BNCC        como estratégia em várias de suas metas. O Ministério da Educação        (MEC), em articulação com o Conselho Nacional de Secretários da        Educação (CONSED), a União dos Dirigentes Municipais de Educação        (UNDIME) e o Movimento pela Base (grupo de profissionais da        educação formado em 2013), encaminharam um processo de construção        desta Base.
        
        Este processo foi intensamente afetado pelas mudanças de        ministros, presidentes, secretários e membros do CNE. E, como não        podia deixar de ser, também é intensamente afetado pelo ambiente        político nacional, em que temas de grande importância, como o que        todos os brasileiros devem saber, sucumbem a disputas rasas em        tempos de pós-verdade. Se houve processos de consulta pública para        as versões iniciais, feitas com tempo muito reduzido para o        tamanho e a importância da tarefa, a última, que agora o CNE        examina, foi feita já às portas fechadas do atual MEC.
        
        Assim chegamos a este caótico ano de 2017 com o risco de vermos        aprovado por um governo profundamente desacreditado uma BNCC que        certamente não foi debatida adequadamente.
        
        São duas Bases, que se anulam mutuamente
        
        Os problemas com a BNCC são diversos. O primeiro, e mais        fundamental, é uma evidente contraposição entre tudo o que é        afirmado na Introdução e o que vem depois.
        
        Em suas primeiras vinte páginas, o documento assume o compromisso        com a educação integral, na perspectiva da busca do        desenvolvimento humano global e na afirmação dos seus princípios.        "A superação da fragmentação radicalmente disciplinar do        conhecimento, o estímulo à sua aplicação na vida real, o        protagonismo do aluno em sua aprendizagem e a importância do        contexto para dar sentido ao que se aprende são alguns dos        princípios subjacentes à BNCC".
        
        Tendo em vista este compromisso, a BNCC organiza-se sobre        competências, assim definidas: "mobilização e aplicação dos        conhecimentos escolares, entendidos de forma ampla (conceitos,        procedimentos, valores e atitudes). Assim, ser competente        significa ser capaz de, ao se defrontar com um problema, ativar e        utilizar o conhecimento construído".
        
        A adoção do enfoque das competências possibilita, segundo o        documento, indicar claramente os direitos de aprendizagem, ou        seja, o que os alunos devem saber fazer como resultado de sua        aprendizagem.
        
        Com base neste enfoque, a BNCC apresenta dez competências gerais,        que se inter-relacionam e perpassam todos os componentes        curriculares ao longo da Educação Básica, para a construção de        conhecimentos, habilidades, atitudes e valores.
        
        Resumidamente, ao concluir a educação básica, os brasileiros        deverão ser capazes de: participar da construção de uma sociedade        solidária; exercitar a curiosidade intelectual recorrendo à        abordagem das ciências; valorizar esteticamente a diversidade        artística e cultural; utilizar as diversas linguagens para        produzir sentidos compartilhados; utilizar as tecnologias para        produzir conhecimentos e resolver problemas; construir seu projeto        de vida; posicionar-se eticamente em relação ao cuidado de si, dos        outros e do planeta; reconhecer-se parte de uma coletividade com a        qual se compromete; orientar-se por princípios democráticos,        inclusivos, sustentáveis e solidários.
        
        "Em síntese, esse conjunto de competências explicita o compromisso        da educação brasileira com a formação humana integral e com a        construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva". Não        há como questionar objetivo tão louvável e competências tão        desejadas para todos os brasileiros.
        
        Os problemas começam depois disso. Em flagrante contradição com o        objetivo de superar a fragmentação radicalmente disciplinar do        conhecimento, a BNCC enquadra: direitos de aprendizagem, campos de        experiência, competências de cada área e de cada componente        curricular, unidades temáticas, objetos de conhecimento e        habilidades, tudo isso por ano escolarização. Esses quadros são        recheados com longas listas de habilidades, cada qual antecedida        de um descritor composto por oito dígitos, entre letras e números,        para facilitar a elaboração de itens das provas nacionais. E assim        preenchem-se as 360 páginas seguintes do documento.
        
        Fragmentação e burocratização do conhecimento
        
        A fragmentação começa com a primazia dos componentes curriculares        em prejuízo das áreas de conhecimento. Assim, listam-se as        habilidades necessárias em língua portuguesa, língua inglesa,        educação física, artes visuais, dança, música, geografia e        história, ao invés de se buscar qualificar as competências de        linguagens e ciências humanas que favoreceriam, integradamente, a        formação dos brasileiros.
        
        Mas, esse é só o primeiro dos problemas, que continuam com o        exagero da quantidade de habilidades listadas. Em língua        portuguesa, por exemplo, são 44 habilidades a serem desenvolvidas        só no 5º ano. E por aí vai.
        
        Depois vem o problema do mau uso da noção de "habilidade",        confundindo-a com prescrição de tarefas, algo que não faz qualquer        sentido em um documento regulador de caráter nacional. Isso está        presente em boa parte das habilidades descritas, mas para dar uma        ideia geral, vamos mostrar alguns exemplos dos diferentes ciclos e        componentes curriculares.
        
        Ao concluir a educação infantil, por exemplo, os brasileirinhos        deverão ter desenvolvido a habilidade de "recontar histórias        ouvidas e planejar roteiros de vídeos e de encenações, definindo        contextos, os personagens, a estrutura e a história". Neste        descritor, temos uma habilidade, que é a de recontar histórias. O        resto são atividades que cada professor deste país tem a liberdade        de fazer ou não, não cabe à BNCC definir como os professores vão        conduzir os processos com seus estudantes para o desenvolvimento        das habilidades previstas.
        
        No 5º ano de escolarização, todos os estudantes deverão "escutar,        com atenção, falas de professores e colegas, formulando perguntas        pertinentes ao tema e solicitando esclarecimentos sobre dados        apresentados em imagens, tabelas e outros meios visuais". Neste        caso, temos quatro habilidades incluídas em uma formulação única,        que prescreve não só o que o professor tem que fazer, mas como o        estudante deve se comportar.
        
        Neste mesmo ano, os estudantes deverão "concluir sobre a        periodicidade das fases da Lua, com base na observação e no        registro das formas aparentes da Lua no céu ao longo de, pelo        menos, dois meses". A habilidade de compreender as fases da Lua é,        neste caso, uma determinação sobre o que o professor de ciências        deverá fazer com sua turma ao longo de ao menos um bimestre.
        
        A outra ordem de problemas envolvendo a extensa lista de supostas        habilidades é a forma hermética e ininteligível de as apresentar.        No mesmo 5º ano, por exemplo, os estudantes deverão "grafar        palavras utilizando regras de correspondência fonema-grafema        regulares e contextuais e palavras de uso frequente com        correspondências irregulares". Já no 9º ano de escolarização, os        estudantes brasileiros deverão ser capazes de "interpretar os        efeitos argumentativos da relação entre elementos constitutivos de        textos multimodais e o impacto social das mensagens veiculadas."
        
        Por fim, mas não menos importante, é a completa ausência de        relação de boa parte das habilidades descritas para o        desenvolvimento das dez competências anunciadas como objetivos da        educação básica no país. E, assim, continuaremos condenando nossos        estudantes a desenvolver subterfúgios para passar em provas que        testarão coisas do tipo: No 8º ano, "História, 8o ano – Reconhecer        os principais produtos, utilizados pelos europeus, procedentes da        África do Sul, do Golfo da Guiné e de Senegâmbia."
        
        No 9º, "Compreender os processos de fatoração de expressões        algébricas, com base em suas relações com os produtos notáveis,        para resolver e elaborar problemas que possam ser representados        por equações polinomiais do 2º grau."; "explicar estados físicos        da matéria e suas transformações com base em modelo de        constituição submicroscópica"; "interpretar cartogramas, mapas        esquemáticos (croquis) e anamorfoses geográficas com informações        geográficas acerca da África e da América"; "identificar efeitos        de sentido do uso de orações adjetivas restritivas e explicativas        em um período composto".
        
        Como existe um grande risco de as habilidades serem concretamente        o objeto central das avaliações nacionais (haja vista a sua        associação a descritores), tudo isso significa que se, por        exemplo, uma escola ou uma rede de ensino do país quiser se        organizar como as da Finlândia, sempre citada como exemplo de boa        qualidade, terá maus resultados.
        
        Isso porque ao possibilitar que os estudantes desenvolvam        projetos, produzam conteúdos baseados em pesquisa, façam uso        criativo das novas tecnologias, participem de iniciativas de        parceria com empresas e outras organizações sociais e, assim,        efetivamente desenvolvam as dez competências gerais, a escola        necessariamente se afastará da proposta subjacente às habilidades        descritas nesta versão da BNCC.
        
        Daí a importância de se discutir e qualificar o seu conteúdo de        forma a garantir coerência com a proposta explicitada nos textos        introdutórios, criando condições reais de que a educação        brasileira se lance a uma perspectiva contemporânea e supere os        modelos fragmentados que a caracterizam.
      
POR HELENA SINGER 
        
educacaointegral
      





 
 
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