O ano é de 1896. Cerca de 250 espectadores se aglomeram numa sala de projeção para assistir um pequeno filme dos irmãos Lumière: A Chegada do Trem em La Ciotat. O filme consistia em uma cena que entrou para a história do cinema. Um trem surgia do horizonte e se aproximava com tamanho realismo que a plateia, surpresa por nunca ter visto uma projeção, ficou apavorada com a possibilidade de serem atingidas pelo trem que figurava na tela. É considerado o primeiro documentário feito na história do cinema.

 

 

Um pouco da aura do século XIX, felizmente, voltou para ficar, no dia 9 de outubro, na França. O cinema que exibiu o filme dos Lumière - o l'Eden Théâtre, em La Ciotat – foi reinaugurado. Esse é o cinema mais antigo do mundo, o qual foi fechado em 1995. Nessa reinauguração, foram substituídas as cadeiras antigas por novas, agora brilhantes e de veludo. Ele também foi todo pintado, recebeu azulejos novos na fachada e o piso teve seu carpete substituído por madeira de carvalho.

Para celebrar a reinauguração, uma montagem dos filmes dos Lumière foi apresentada no cinema, juntamente à restauração do filme emblemático dos cineastas pela Fundação Mundial de Cinema de Martin Scorsese. Diversos filmes antigos dos Lumière foram exibidos na reinauguração, que teve como atração principal o filme americano "Sindicato de Ladrões" (1954), de Elia Kazan, com Marlon Brando como estrela. Grandes nomes do cinema francês, como o diretor Roman Polanski e a atriz Nathalie Baye, compareceram à cerimônia.

 

 

"Esse é um prédio importante, não apenas para a história do cinema, mas para as pessoas da região. Gostamos de dizer que metade das pessoas de La Ciotat conheceu a outra metade no Eden e, quando essas pessoas vieram ver o que fizemos, muitas delas estavam tão felizes de ter seu cinema de volta que até choraram", disse Guy Guistini, presidente da associação L'Eden des Lumières, que ajudou a financiar a renovação, ao jornal britânico "The Guardian".

Antes desse mito hollywoodiano que se expandiu no decorrer do século XX, como o símbolo da indústria cinematográfica, havia La Ciotat como o início da sétima arte. Uma pequena e pitoresca cidade no Mediterrâneo que semeou o que se tornaria praticamente indispensável na vida humana como maneira de interpretação sobre a própria existência: o cinema.

Já havia máquinas que exibiam imagens quando Auguste e Louis Lumière criaram a Cinématographe Lumière, uma caixa de madeira que não tirava somente fotos, mas também desenvolvia e as projetava numa tela. Após patentear a invenção, os irmãos exibiram filmes curtos para uma audiência de 33 pessoas no Grande Café em Paris, em 1895, em seguida na casa de verão da família Lumière. E, finalmente, no l'Eden Théâtre.

O cinema abriu em junho de 1889 como um teatro e espaço para concertos, mas também apresentou óperas e tragédias Greco-Romanas. Ele fechou em 1982 após o dono ser assassinado por ladrões que queriam roubar os lucros da casa e também pela queda das vendas de ingressos. Continuou aberto durante uma semana, uma vez por ano, a fim de exibir pequenos festivais de filmes. Mas fechou em 1995 e foi deixado em estado de abandono. Adeptos do teatro continuaram a insistir na reabertura do cinema, mas só conseguiram adesão e dinheiro para investimento quando Marseille foi nomeada capital europeia da cultura em 2013.

O retorno de l'Eden Théâtre é incomensurável. Busca recuperar uma nostalgia que não idealizamos com frequência. Afinal, o cinema que está em nosso ideário se constituiu tardiamente. Pode-se dizer, porém, que o filme A Invenção de Hugo Cabret trouxe à luz novamente, ao grande público, a história da origem do cinema, com George Méliès e os irmãos Lumière. Ver o cinema mais antigo do mundo voltar à vida, colocando-o numa nova realidade, significa não admitir que uma parte da história seja esquecida entre destroços e abandono.

Diante desse fato, não é difícil se lembrar do Cine Belas Artes, o qual foi fechado há dois anos em São Paulo, após 43 anos como um dos cinemas mais antigos da cidade. Ou tantos outros cinemas de rua que viraram igrejas, shoppings, estacionamentos ou lojas. Em janeiro de 2013, o jornal Estadão divulgou (aqui) que a prefeitura de São Paulo tem o objetivo de transformar o prédio do Cine Belas Artes em um espaço cultural, tentando se desvencilhar da polêmica que foi a desapropriação do imóvel em 2011, enquanto dizia-se que o cinema se tornaria um centro comercial. A questão é que já foi declarado que funcionará uma loja no local. Mas a fachada foi tombada e hoje se encontra pichada e abandonada, fato que dificulta o funcionamento da possível loja. Ou seja, é uma situação extremamente incerta, da qual ainda não temos ideia de seu desfecho.

Na matéria feita pelo Estadão, segundo o advogado Marcelo Manhães, representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio (Conpresp), "O público que hoje frequenta cinema de rua é muito restrito e o dinheiro pode ser aplicado em outras prioridades", afirma. "Não é o espaço que retrata a importância do cinema, e sim o conceito dele. Então pode ser em outro lugar, não naquela localização tão famosa e tão cara."

Levando em consideração que são raros os cinemas de rua que sobraram e pela história que eles carregam, a preservação de um cinema – seja o l'Eden Thêatre, seja o Belas Artes – é de extrema relevância. Certamente, o apelo de filmes europeus não é o mesmo dos filmes blockbusters que ocupam mais de uma sala nos cinemas de shoppings. E aqui, realmente não é questão de qualidade do filme, se ele se enquadra ou não no termo que se passou a usar como cult. Não é isso. Significa aqui dizer que é preciso ter um cinema (quer dizer, mais de um) que esteja inclinado a expor outros gêneros cinematográficos, de outras nacionalidades, os quais não conseguem espaço em cinemas de grande público. Para quem deseja conhecer outras vertentes cinematográficas – como um espectador curioso, profissional da área ou um amante da sétima arte – a experiência de vê-las no cinema deve ser preservada. O choque, a exploração estética do filme, o trabalho do elenco, o cuidado apurado do diretor em filmar as cenas de modo consciente, tudo isso se acrescenta à experiência de estar diante da tela. Por quê? Você não o faz sozinho. Há um público que reage de maneiras distintas ou semelhantes a você. O cinema é catarse.

Ademais, um prédio que agrega o cinema não é somente um espaço físico. O que podemos nomear como conceito, algo universal, é o cinema e o significado da linguagem que ele usa em cada película. Posso ver um filme de outra nacionalidade e me identificar com ele. É possível ver um filme mudo e compreendê-lo com a mesma intensidade de um filme falado. Ou seja, ele pode ser, sim, um conceito e, portanto, universal. Mas quando ele se situa em um prédio que tem em si uma história, deve-se ter um cuidado maior na interpretação do prédio como um patrimônio. Há um público que se identifica não somente com a programação, mas que o vê como um símbolo detentor, fisicamente, da memória conservada pelos filmes vistos. Não conseguimos presentificar uma memória, apenas os objetos conseguem remeter a elas. O Belas Artes, o l'Eden Théâtre mantêm presos no espaço a experiência vivida por inúmeras pessoas. Ele acaba por se constituir como um reservatório de memórias.

O significado do cinema está em expandir a interpretação que possuímos do mundo. O cinema não existe para si mesmo. Ele precisa da fruição do espectador, dessa troca inexata entre nós e a linguagem existente nele. Por isso, recuperar o espaço do cinema é preservar publicamente a singularidade que ele tem: a capacidade de fazer uma plateia entrar magicamente em choque com um trem em movimento numa tela.

Se quiser saber mais sobre o significado de um patrimônio histórico, o Causas Perdidas fez uma matéria aqui: "Patrimônio? Para que serve?"

Fonte.

Revisado por Carlos Cavalcanti